6 Ficção televisiva e politização
do cotidiano
recortes nacionais, regionais, locais tem sido realizado há mais de duas décadas pelas minisséries brasileiras.
Trata-se de uma experiência cultural que não pode ser negligenciada, principalmente se observarmos a maneira como as narrativas ficcionais se entrelaçam com as tramas políticas. Isto foi muito bem explorado, por exemplo, no livro de
Narciso Lobo, Ficção e Política (2000), tratando da minissérie Anos Rebeldes (1992).
Ou seja, de certa maneira, a ficcionalidade contribui para um estilo de politização do cotidiano, pois libera dimensões que foram ocultadas pela história oficial .
No plano da ética e da micropolítica, as minisséries têm desempenhado um papel importante, na medida em que colocam em cena as expressões dos grupos ideologicamente minoritários: os negros, os índios, os gays, os velhos, os migrantes têm sido representados em cena com respeito e dignidade, o que significa um avanço em termos de modernidade cultural num país que exibe os traços de uma democracia étnica, mas que ainda mantém resquícios de preconceitos e discriminações.
É por essa via que compreendemos a importância as ficções inspiradas nas obras do escritor mais popular do Brasil, Jorge Amado, como Tenda dos Milagres (1985),
Tereza Batista (1992), Dona Flor e seus dois maridos (1998), Pastores da Noite (2002).
Atualmente a região norte e os problemas indígenas têm sido revisitados na obra Amazônia – De Galvez a Chico Mendes (2007), o que preenche uma lacuna na teledramaturgia brasileira. A questão das identidades, orientações e minorias sexuais ainda é um tabu na ficcionalidade brasileira, mas, as telenovelas e minisséries têm contribuído para a quebra de antigos preconceitos, em narrativas como Grande Sertão Veredas (1985), Hilda Furacão (1998), Memórias de um gigolô (1986), Os Maias (2001), entre outras.
Há modalidades de ficção que não são minisséries, nem são telenovelas, mas são seriados
que têm assinalado a sua importância na arte tecnológica da televisão, como o programa Cena Aberta (2003), que entre outros episódios apresentou a adaptação da obra A hora da estrela, de Clarice Lispector, em que se coloca o problema de uma migrante em São Paulo, vivendo uma história trágica, que serve em última instância para virar do avesso o melodrama a partir de uma perspectiva estética inovadora. Aliás, os problemas dos migrantes já tinham sido contemplados numa minissérie adaptada do livro de Zélia Gattai, Anarquistas graças a Deus (1984) e também de modo magistral do grande afresco televisual Um só coração (2004), expondo o itinerário do movimento modernista brasileira, em São Paulo, durante os anos 1920 e 1930.
No contexto da cultura narcisista contemporânea notamos a falta da representação dos
idosos numa perspectiva crítica e compreensiva, alertando para a necessidade de uma
consciência social voltada para a “terceira idade”. Em verdade, temos grandes narrativas
tratando da questão, mas numa perspectiva que contempla as histórias de vida dos
personagens ilustres e anônimos, em diferentes fases da sua existência, como por exemplo, em Chiquinha Gonzaga (1999), A Casa das Sete Mulheres (2003), Guerra de Canudos (1998), em que temos a inscrição de velhos loucos, sábios e geniais, mas fica ainda faltando um tratamento específico ao tema.
Num país de grandes disparidades étnicas, é interessante perceber como nas minisséries
se projetam as dimensões místico-religiosas, que constituem uma temática nem sempre
pacífica, como podemos vislumbrar em O Pagador de promessas (1988), explorando os conflitos entre a igreja católica e o candomblé, em Decadência (1995), uma ficção que
problematiza a exploração da fé por um pastor evangélico, e em A Muralha (2000), uma
narrativa situada no Brasil colonial, em que se exibem as tensões entre os índios e colonos, os cristãos novos e a Inquisição. Neste sentido poderíamos entender a força
da teledramaturgia apoiada numa dimensão.
As minisséries brasileiras
forças místicas da natureza, que, longe de se constituir numa forma rasa de irracionalismo, concede forma e sentido às interculturalidades do Brasil, e a ficção está sempre atenta para isso, desde o trabalho do dramaturgo Dias Gomes até produções mais recentes como as de Guel Arraes.
Enfim, ressaltamos a importância das minisséries, no contexto mais amplo da teledramaturgia brasileira e da própria experiência cultural latino-americana, como um fator essencial no conjunto de correlações políticas e culturais, que distingue um lugar expressivo no âmbito da mundialização. As minisséries devem ser entendidas como uma espécie de “segunda pele do Brasil”, como visibilidade de uma configuração simbólica que permite compreender os paradoxos e complexidades deste país. Mini-currículo: Cláudio Cardoso de Paiva, Prof. Associado do Departamento de Comunicação, UFPB. Mestre em Comunicação, Universidade de Brasília, 1988; Doutor em Ciências Sociais, Université René Descartes, Paris V, Sorbonne, 1995. Pesquisador em Comunicação na área de teledramaturgia. Membro do GT Ficção Seriada, INTERCOM.
(continua...)
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